Polemizar/Polinizar

Quando penso no que deve ser a cultura, penso normalmente na ideia de diálogo, ou na ideia de interrogação. 

Tendo estado este início de manhã a pensar que vida cultural existirá em Lisboa, não pude deixar de fazer um périplo sobre as várias dimensões a que o termo "vida cultural" nos remete: uma certa pobreza quanto a museus (que grande museu existe em Lisboa que nos convide a percorrer boas exposições? Nada que se compare a uma Paris ou Madrid); por contraste, por cá, uma programação muito vasta de acontecimentos musicais, onde se incluem festivais; também os há de cinema (semana do cinema francês, ou do cinema italiano, só para dar dois exemplos, mas há para todos os gostos como o "Doclisboa", ou mesmo a "festa" do cinema do terror como o "MoteLx"...) 

Festivais: algo mais efémero do que o que um museu pode proporcionar - um museu que se preocupe com uma programação criteriosa, que dê a oportunidade de criar vínculos com as pessoas e com a cidade. "Festivalar" é fácil; difícil é ter locais de irradiação de cultura, isso é toda outra coisa...

Por falar em cinema, existirá um "cinema português"? Uma produção cinematográfica portuguesa? A experiência de ir assistir a filmes portugueses é que normalmente é algo, quanto muito, sofrível, para não dizer pior...

Manoel de Oliveira e Agustina Bessa Luís faziam uma dupla interessante, mas ir ao cinema para ver um qualquer filme rodado por Oliveira, baseado na prosadora, não seria programa muito apetecível. O talento de Oliveira não se compararia a um Visconti, embora também se tratasse dum homem de grande cultura. Ver um lisboeta como João Botelho reproduzir "os Maias" é algo que fica a anos luz duma qualquer produção de reconstituição histórica ou filme de época da BBC. Serão os meios muito mais parcos, ou será defeito do realizador?! Há não muito tempo, vi o filme o "Nosso Consul de Havana" de Francisco Manso, sobre a passagem de Eça de Queiroz por Cuba enquanto diplomata e, realmente não se pode dizer que se trate dum bom filme... Não se fazem "omeletas sem ovos", ou o "cozinheiro" não chegará lá?! Estarei a polemizar?!

Por falar em Oliveira ou Agustina, o Porto teve e tem uma plêiade de pessoas cultas, mais cosmopolitas que muita da cultura gauche caviar que se sente por vezes no meio cultural de Lisboa, onde (não é surpresa para ninguém, o "Rei vai Nu"!) se nota um complexo de esquerda soi-disant "bem-pensante", normalmente bem instalada (fechada) e servida por apoios. Neste sentido, prefiro o Porto que é mais aberto - que não tem medo de ser culto e de bom gosto. 

Em Lisboa, fazer uma nova Expo 98 seria impossível; e, no entanto, essa foi uma experiência de cultura, no sentido do diálogo e/ou da interrogação (não por acaso, teve justamente um homem da burguesia do Porto na sua origem, Vasco Graça Moura). As guerras culturais que o mundo ocidental vive um pouco, certamente que contaminam o ambiente da cultura institucionalizada e isso também sucede na nossa capital, embora seja uma pena porque isso condiciona a criatividade dos artistas e os condena a um discurso pré-determinado (que se encaixa, ou não, no que é considerado "ortodoxo"). Estarei uma vez mais a polemizar?! Talvez...

Há quem fale da falta de públicos. Isso é notório no teatro. No entanto, defeito meu certamente, poucas vezes fui ao teatro e sai de lá empolgado. Lembro-me de um Festival de Almada, há uns anos e gostei. As minhas últimas experiências do teatro, mesmo no D. Maria II, foram de espectáculos muito experimentalistas, se calhar para militantes já ganhos para a causa, e saí sem vontade de repetir. Por isso - e pensando no meu caso especial, que se calhar se estende a  outros, ir ao teatro é tentar retomar uma relação difícil, com algumas fragilidades... Faço um mea culpa, mas no teatro estou já à partida desinteressado (e se calhar estupidamente, mea culpa!)

A Brotéria, um espaço cultural dos jesuítas perto de mim, no Chiado, ensaia um diálogo com a cultura contemporânea. É um diálogo muito difícil, porque há que tentar estreitar distâncias antigas, preconceitos, equívocos e mal-entendidos, além da dificuldades das linguagens um tanto herméticas (senão mesmo elitistas) do mundo da arte, que afastam o comum dos mortais (alguém que trabalha e vive na cidade e que é apenas um leigo, mas que até gostaria de perceber...) A arte e a cultura deveriam falar a todos e, por isso, trata-se dum trabalho de fazer pontes, de dialogar. A Brotéria ensaiará o  "catolicismo" (que significa "universal") de fazer pontes? Ou é mais um lugar para ecoar discursos em circuito fechado, neste caso os dos artistas e os dos agentes culturais?

Realmente, o que acho que falta, muito mais do que festivais e espectáculos é reflexão, convite à interrogação e ao espanto. Sim o espanto! E para isso é preciso formar comunidades pensantes; andar nas ruas de Lisboa é interessante, mas não é suficiente. Ser uma espécie de abelha que poliniza e colhe daqui e de acolá; é essa a razão porque para mim as cidades são sempre mais interessantes (embora haja mais abelhas no campo). Mas depois a "abelhinha" precisa de fazer o mel e aí é que está o segredo das coisas: há que processar a informação... É por isso que é importante essa comunidade.

A cultura não pode ser apenas a arte do efémero. Temos que nos sentar, conversar com os outros, conversar conosco e com os nossos botões... Tem que ficar mais do que a "espuma dos dias", chegar ao ponto de inventar projectos de homem e de sociedade! 

Era talvez isso a que se dedicavam os artistas e intelectuais que se sentavam nos espaços de tertúlias que havia por Lisboa, como imagem que se vêm em baixo. O mel só sai do esforço da colmeia. No quadro em baixo, uma encomenda para "a Brasileira", vários artistas encontram-se sentados a uma mesa, uma comunidade pensante, dir-se-ia "massa crítica". Este quadro estará agora na Fundação Gulbenkian (cujo Centro de Arte Moderna se aguarda que abra qualquer dia). Foi pintado por Almada Negreiros, que fez do espanto o seu lema. Dele, nada era vulgar.

Polinizar sim! Polinizar é preciso (e também polemizar!), como navegar é preciso!

José de Almada Negreiros, quadro para "a Brasileira", 1925
                                    

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