Biografias


Nesta pausa das festas li com grande interesse o livro "A Chanceler - A Notável Odisseia de Angela Merkel" (Kati Marton, Ed. Desassossego, 20221). Trata-se de um livro com uma cadência que prende o leitor e que está dividido numa série de capítulos que têm essencialmente que ver com etapas da sua vida. 

Sendo uma pessoa extremamente discreta - não abre a sua casa para ninguém e não fala da sua vida privada, uma reserva extremamente rara nos nossos dias, a autora nem sequer pôde contar com a própria para pode realizar o livro. Resulta porém de um trabalho bem feito de alguns testemunhos de pessoas que a conheceram de perto e de pesquisas desenvolvidas de forma séria. 

Para quem quer conhecer o que se passou na cena internacional nas últimas décadas, este é certamente um contributo incontornável, pois por Merkel passaram as grandes questões do nosso tempo, nomeadamente do tempo europeu: a crise do euro, ou dos refugiados, os problemas geopolíticos e a questão da defesa europeia. Ou a questão da Rússia e do recrudescimento do poder da China e como lidar com líderes autocráticos, as dificuldades internas derivadas de partidos de uma direita mais nacionalista, ou mais recentemente a resposta à pandemia. 

De aluna brilhante dotada de memória prodigiosa, Angela, tornada cientista, rapidamente percebe que o modelo que seguiu de Marie Curie - a cientista devotada à pesquisa em laboratório, não lhe permitiria realizar-se. Um casamento falhado e um passo decidido que dá para se fazer política, notada e apadrinhada por Helmut Kohl, que detecta uma inteligência e uma astúcia invulgares, ainda certamente cobertas por uma certa timidez. Dada a reunificação, Angela estava no local certo: era importante que a "Alemanha de Leste" entrasse para o governo. O seu método científico, a capacidade de análise das situações desde logo se fizeram notar como a de uma pessoa extremamente competente para tarefas executivas. E assim foi fazendo o seu caminho até se tornar chanceler, "matando" figurativamente o seu protector Helmutt Kohl quando este se viu envolvido num escândalo de financiamento à CDU.

O retrato que Kati Marton apresenta é o de uma pessoa que foi vencendo desafio em desafio. 

Deleuze diz que a "ética é estar à altura do que nos acontece", frase que se podia aplicar a Angela Merkel. A sua sobriedade, herdada certamente de seu pai, um pastor luterano que não terá percebido todo o valor da sua filha, manteve-se ao longo de toda a sua vida, o que lhe fez granjear e manter a confiança do povo alemão. Quando falou ao povo alemão em Março de 2020 no início da pandemia, usando a gravitas num discurso quase olhos nos olhos, dizendo que este seria o maior desafio de todos, a Alemanha seguiu as suas palavras, porque esta era a chanceler que se habituara a dizer o mesmo que fazia. 

Firme e intransigente na defesa do interesse público, ninguém a pode acusar de se ter servido do poder. Firme e intransigente, mas também de decisão lenta, muitos lhe acusaram as hesitações, por exemplo aquando da crise das dívidas soberanas. 

Em geral precisava de ponderar tudo bem e perceber o que deveria fazer. 

Podemos aprender - e ela certamente terá aprendido, com experiências dolorosas. A Grécia, mas também Portugal viveram períodos muito difíceis. As políticas económicas de choque, levaram as economias do sul a uma depressão generalizada. Com a pandemia, ela pôs-se ao lado de Macron e a "bazuca" tentou aplicar uma procedimento diferente: uma lição aprendida?! 

A mais corajosa decisão, foi a de, por razões humanitárias, abrir as portas da Alemanha a cerca de 1 milhão de refugiados. Para um país que ela não se cansava de repetir tinha que falar dos crimes horrendos do Holocausto - parte da sua identidade como país, a decisão de dar guarida aos refugiados que fugiam da Síria ou Afeganistão era um imperativo ético e em certa medida uma forma de reconciliar o mundo com a Alemanha. Tal veio-lhe contudo a criar dificuldades internas com a entrada de novos partidos no Bundestag que alteraram o cenário político interno para uma cenário mais ríspido e crispado, mas ainda assim foi eleita para um último mandato como chanceler, algo que já não fazia parte dos seus planos.

Alçada por Obama como a representante do mundo livre, Merkel era a única que se conseguia fazer respeitar por Poutine e apanhá-lo nas suas contradições. Empregando uma vez mais o método científico (!), dotada da tal memória prodigiosa que referi, incansável e paciente, a sua acção diplomática foi um dos seus principais legados. 

Temos a agradecer-lhe os esforços e a sua infatigável busca pela paz.

Não nos podemos porém esquecer que Merkel via as coisas da perspectiva duma alemã, preocupada por representar os alemães, o que é perfeitamente normal. As relações com a China creio que não escondem os interesses da indústria automóvel alemã, assim como a questão do Norte Stream são difíceis de entender, talvez um dos maiores erros dela. Trump, esse enfant terrible bem percebeu também a contradição duma Europa que não investia na sua defesa no quadro da Nato, mas que estava a construir um pipeline para comprar gás à Rússia...

E falando da Rússia, o segundo livro que estou agora é uma tentativa de retratar Poutine. Comecei agora a lê-lo ("Poutine" de Frédéric Pons, Ed. Calmann-Lévy, 2014). 

Depois do livro de Merkel em que se desenvolve com algum interesse a personalidade deste homem e a suas idiocrasias, este é um ensaio com já 10 anos sobre o mundo deste homem, onde não se esconde a ideia mítica duma Rússia Imperial, à Pedro o Grande, retrato de quem mandou colocar no edifício onde foi trabalhar em São Petersburgo quando regressou de Dresden com a queda do Muro de Berlim e onde era agente da KGB. 

Quais os fantasmas e os mitos da Rússia, dores e sonhos perdidos desse país, o maior do mundo e que Poutine quis encarnar? Um Napoleão que restaura a ordem e alça de novo a glória da Rússia humilhada?! Em certa medida, assistimos atónitos ao que se passa, mas como se diz no livro, a Rússia apenas viveu em democracia cerca de 20 anos (de 1991 a 2000) e a memória que esses tempos deixaram não é das melhores...

Merkel e Poutine, duas pessoas que talvez não encarnem os estilos de liderança mais convencionais, mas que ainda assim que nos pedem que pensamos sobre a importância que as suas pessoas tiveram/têm para o curso do nosso mundo... A primeira já afastada da cena, o segundo que ainda não sabemos que cartadas ainda jogará...



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