A imaginação cristã para elevar o real

Recentemente comecei a ler um livro que a bem dizer estou a "devorar":  "A Arte de viver em Deus - a imaginação para elevar o real" (Paulinas, 2021) de Timothy Radcliffe, op. 

É um livro que me tem feito muito bem - e eu preciso muito destes livros espirituais...

Neste livro, Timothy Radcliffe (autor que conheço desde há muitos anos, o primeiro livro dele comprei-o creio que em Paris em 2001 e intitula-se "Je vous appelle amis"), nota-se uma pessoa muito lida e que consegue cruzar múltiplas experiências, leituras, filmes, músicas, encontros, etc e dar um sentido rico a tudo isso. Apetece voltar a ler desde o princípio. É algo que eu por vezes faço: quando gosto muito duma coisa, volto a repetir desde o princípio. Este livro é de uma grande frescura, aliás é uma pedra de toque deste dominicano, um bem-disposto frade, o que será quiçá tributário dessa cultura britânica que não dispensa o bom-humor (pena é que muitos deles se tenham feito protestantes, pois poderiam como este fiel católico contribuir para enriquecer a nossa Igreja).

Radcliffe fala-nos da alegria primordial de viver e que precisamos de aumentar o reportório de acção e de leitura do mundo, procurando conferir-lhe um sentido. Não há nele uma fuga à realidade, antes um aprofundamento: o cristão não nega o mundo, não vive cheio de obrigações e condicionamentos; vive antes uma relação com Deus, como seu amigo, que não dispensa a dificuldade e o desconcerto. A vida nasce duma relação com Deus, que se propaga a tudo o mais e se o mundo não é cristão, não é certamente em grandes sermões que ficará melhor, mas do ardor do coração daqueles que se dizem cristãos (aqui faço um pequeno desvio: quem como eu teve o privilégio de conhecer homens como o Pe. Dâmaso Lambers, o "padre das cadeias", que não se cansava de proclamar que "Jesus é fantástico!" não poderia ficar indiferente a esse ser fascinante e apaixonado que irradiava uma enorme alegria; bem percebemos, assim, as palavras de Radcliffe...)

A própria vida é boa e a relação com Deus também se enriquece de tudo o que nos acontece. É por isso que um não cristão pode também ensinar-nos a viver, pois não é exclusivo do cristão - é algo do próprio Homem - tentar encontrar a melhor maneira de ler e estar na realidade. 

Creio que este livro é uma pérola e vem muito adequadamente prefaciado pelo Pe. José Frazão Corrreia, sj, que abre com um poema de Nuno Júdice ("Se eu rezasse, pediria compaixão/para os que não amam, para os que não sabem/para onde olhar quando estão sós e lhes falta um rosto amado na memória/para os que olham para uma flor e só pensam no dia em que irá morrer (...)"). 

Diz-nos no prefacio: "Viver ou não viver, eis a questão", citando a Bíblia: "Ponho diante de vós a vida e a morte, a benção e a maldição. Escolhe a vida para viveres, tu e a tua descendência" (Deut. 30, 19).

A propósito deste livro, José Frazão Correia, ainda no seu prefácio, cita vários autores e provoca-nos com várias frases de autores da actualidade como "(...) poderá e saberá a fé cristã apresentar-se e ser reconhecida como força que faça viver e forma que possa configurar a vida ?" "(...) importa levar a sério como, justa ou injustamente, deixou de ser evidente que a fé cristã esteja do lado da vida e sirva a vida, e que a Igreja seja realidade vital, «corpo de sentido». 

Com efeito, há um desencontro do mundo com a forma como se tem vivido a nossa fé, fechada num código de leitura, que por vezes soa a um propalar que nada nos diz. A espontaneidade dos gestos, a bondade, a criatividade de Jesus não se deve deixar enclausurar por um mundo que deixou de ter narrativas que atraem e que se fecha em guetos de sociabilidade, de que o ser-se funcionário da religião é um deles. Frazão cita um autor que gosto bastante, o sul-coreano que reside em Berlim e autor de ensaios sobre o nosso tempo, Byung Chul-Han, que p.e. acusa o mundo de perca de sabor (tudo se tornou igual, são tudo experiências que se sucedem, sem nenhuma estrutura). Ora o Cristianismo não é uma doutrina, é antes um caminho, uma vida que se faz e se constrói.

A virtualidade de Radcliffe é que vai à actualidade buscar os exemplos que nos permitem resgatar esse diálogo com a vida contemporânea que, como sempre aconteceu, pede resposta às suas interrogações, deslocando o nosso olhar para histórias que nos poderão reatar com o sentido profundo das nossas existências (Religião é talvez isso "religare"). Não é certamente estranho para o autor que grandes obras literárias como o "Senhor dos Anéis", "As Crónicas de Nárnia" ou "Harry Potter" tenham sido grandes sucessos: dão-nos respostas que precisamos, usam a grande arma da imaginação para nos questionarmos sobre as questões da nossa vida.

Radcliffe tenta colocar o Homem no seu lugar, como ser criado à Imagem e Semelhança de Deus. Tudo o que é menos do que isso, deixa o nosso coração insaciado, e termino com uma citação do livro, dum dos muitos exemplos que Radcliffe nos dá: 

"No amor pelos outros, no trabalho, na vida quotidiana, os apelos do infinito acham-se no fazer o máximo, o mais difícil. Abraham Verghese, professor na Faculdade de Medicina da Stanford University, escreveu um romance acerca da prática da medicina, na Etiópia e nos Estados Unidos, «Cutting for stone». Nele, Marion Stone, futuro cirurgião, conta-nos como descobriu a sua vocação:

«Viemos sem convite a esta vida e, se tivermos sorte, encontraremos um propósito para lá da fome, da  miséria e da morte prematura que, não esqueçamos, é a herança comum... Escolhi a especialidade de cirurgia por causa de Matron, aquela presença constante, durante a minha infância e a adolescência. 

- Qual é a coisa mais difícil que, possivelmente, podes fazer? - disse ela, quando lhe foi pedir conselhos sobre o dia mais escuro da primeira metade da minha vida. Eu contorcia-me. Com que facilidade Matron sondou o fosso entre ambição e conveniência.

- Porque é que hei de fazer o que é mais difícil?

- Porque tu, Marion, és um instrumento de Deus. Não deixes o instrumento parado no seu estojo, meu filho. Toca! Não deixes por explorar nenhuma parte do teu instrumento. Porque é que hás de contentar-te com a cantiga de embalar Three Blind Mice quando podes tocar o "Glória"?»

 

  




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