Duas lições ("o fio ténue da confiança" do ciclo short stories)

A semana passada aprendi duas boas lições, muitos simples.

Uma boa arrumação
A primeira lição é a de que uma arrumação bem feita nos permite encontrar coisas inesperadas. Ter tempo para arrumarmos a nossa tralha é importante, pois damos por nós a concluir que já temos muito daquilo que julgávamos precisar comprar. Mas isto pode aplicar-se a quase tudo: acarinharmos os nossos livros, p.e., quantos dos nossos livros são livros que nunca quisemos conhecer? Quantos dos nossos livros esperam pelo gesto de os abrirmos, de começarem a falar connosco? 
Preferimos quase sempre comprar, precipitar-nos para os eldorados do comércio. Parece que o acto de compra liberta uma enzima em nós, que nos faz felizes. A novidade de uma capa nova parece que é como comprar um carro novo. É algo semelhante a "the grass next door is always greener".
Mas um livro numa prateleira que espera por nós, é também se calhar como aqueles amigos com quem há muito deixámos de conversar. Aquelas amizades que já não cultivamos. Porque será isso? Será que temos medo de repetições? Se calhar achamos que a criatividade é só para o novo, aí é que testaríamos a nossa criatividade de inventar novos futuros. Penso porém que reiventar novos futuros com o velho, essa é que será verdadeiramente criatividade. Inventar novas danças, novos ritmos com o velho, com o antigo. Temos é que saber criar rituais para voltar a dar vida a coisas que pareciam adormecidas, ou mesmo mortas. Não é fácil. Tem que haver sempre um acto de celebração. 

O grande estadista de Gaulle dizia que preferia  trabalhar com aqueles que já conhecia, porque já lhes conhecia todos os defeitos. É um pouco mais por aí.

No outro dia descobri mais de 8 pares de sapatos no fundo da gaveta. Resolvi tirá-los para fora, engraxá-los, pô-los ao sol. Afinal não precisava de comprar. Apenas de lhes dar nova vida. E que ganho meu Deus em termos de recursos. Dinheiro que poupei, espaço que poupei. E celebrei essa acto de lhes dar vida, numa manhã de sol de Domingo, em que enquanto engraxava os sapatos assistia a um belíssimo jogo de ténis de Wimbledon, com a grande janela da minha sala aberta sobre o rio!
E, tudo isto, pôs-me a pensar se na minha biblioteca não está já grande parte da sabedoria que procuro; se no meu computador não estão já muitas das ferramentas que preciso na minha profissão, os documentos de que preciso, a doutrina de que preciso. Nas milhares de pastas no meu computador, há tanta coisa que não consulto...

Afinal acumulamos e acumulamos. E não temos tempo para parar e ver que antes de olharmos para fora devemos olhar para dentro. 

O fio ténue da confiança
Tenho uma mulher-a-dias africana. É uma rapariga bem educada e risonha. É discreta e faz bem o seu trabalho. Não a tenho há muito tempo. E no outro dia faltou e depois mandou-me uma mensagem a dizer que tinha adormecido. Achei sincero da parte dela tê-lo dito dessa forma.
Por causa de umas enormes manchas de bolor e humidade que tenho no tecto duma casa de banho - provocadas por infiltrações dos vizinhos de cima, que por várias vezes me disseram que se responsabilizariam pela reparação, mas que nunca o assumiram na verdade - resolvi deitar mãos-à-obra e reparar o problema, a minhas expensas.
Pedi à minha rapariga africana que limpasse tudo muito bem com lexívia, antes de ser pintado. Acho que ela não gostou muito desse trabalho. No dia seguinte não veio, disse que estava com qualquer coisa de saúde. Achei que não era verdade, mais uma daquelas desculpas que são tão frequentes.
Por causa da minha vaga de arrumações, comecei à procura duns óculos escuros Persol que tinha comprado no ano passado. Não os encontrava.  Fui a uma gaveta na entrada da casa e vi lá a caixa dos óculos, aberta sem os óculos lá dentro.  Procurei depois nos bolsos dos casacos. Nada.
Daí a pensar que tinha sido a rapariga que tinha "surripiado" os óculos foi um pequeno passo, muito pequeno passo: óculos apetecíveis, fácil sucumbir à tentação... Aquela falta dela, aquela desculpa esfarrapada, revelava algum mal-estar dela. Uma culpa. O querer esconder-se. Pedi-lhe por mensagem para ela me ligar; ela não ligou. Um ou dois dias depois, enquanto já ensaiava o que fazer e me sentia como que enganado (estava hesitante entre deixar passar de forma magnânima ou tocar ao de leve na questão de se ela sabia onde estavam os óculos), ainda esperava o telefonema dela para saber o que se passava. E, nesse mesmo tempo, ponho um blaser e ao meter a mão no bolso estavam lá os óculos!
Que grande lição que tive. E que terrível é todos os sentimentos que me ocorreram pela situação de não saber onde estavam. 
Tenho também um pequeno mealheiro onde todas as semanas coloco uma nota para ir poupando para alguma coisa. Já pensei que não devia estar à vista dela. É verdade que a "ocasião faz o ladrão", mas esta desconfiança é algo terrível e tenho que trabalhar isso.
A rapariga chegou cá depois no dia que por mensagem me tinha dito que vinha entretanto.
E vinha com os olhos inchados. Tivera uma alergia terrível por causa da lexívia.
Eu gosto dela. Ela é bem educada e risonha. É discreta e faz bem o seu trabalho.
No outro dia, ao limpar os meus livros disse-me muito que gostava de aprender. Eu disse-lhe: isso é fantástico. Quer que lhe escolha um livro? E ela disse-me que sim e levou, toda contente, um livro para casa.

A confiança é um fio muito ténue. Estive quase a parti-lo, justamente com alguém que tem sido para comigo uma ajuda preciosa. Iria ofendê-la profundamente, criando nela um sentimento de injustiça que deve já ter muitas vezes sentido por aqui, pois é muito fácil acusar sem razão e muitas vezes operamos com preconceitos frente ao diferente. Na terra donde ela vem são pobres, mas as relações entre as pessoas são calorosas e os pais ainda ensinam provavelmente que mentir ou furtar é errado. Talvez muito melhores do que nós.  
























Comentários

Monserrate disse…
É tão bom quando conseguimos ter a perceção, do quanto a vida nos ensina em pequenas “boas lições” como estas. Ando um bocadinho distraída…

Não gosto de comprar novo… adoro o "emprestadado"... roupas, moveis, livros, quadros… admito uma certa compulsividade em livros, espetáculos e viagens… cada vez mais, facilmente controlada, com o vasto “mundo das prioridades”.

Que melhor pode haver do que entrar numa livraria e durante horas a fio folhear livros ao acaso, procurar títulos, autores, temas… ainda o faço algumas vezes, não tantas como gostaria. Tenho um certo orgulho nos meus impulsos… “A novidade de uma capa nova (…)” que só pela palavra “hoje” chamou a atenção, levou-me à mais improvável das histórias. Qual seria a probabilidade?

Nunca questionei muito, quanto tempo, os “outros” permanecem na minha vida, acredito que ninguém entra na vida de ninguém ao acaso e que também os afastamentos não são premeditados. São reflexo de alguma coisa. Agradeço todos os que permanecem… aprendi a não lamentar, tanto, os que não ficam. Voltar a livros antigos é confirmar, que por algum motivo, estes não foram acabados. O retomar de qualquer coisa, dificilmente será uma repetição.

O exercício criativo, terá sempre de existir, em tudo o que fazemos, seja em dar nova vida a sapatos, a livros, a pessoas… o importante é que entendamos o que nos leva a fazê-lo. Teremos de pensar, muitas vezes “out of the box”; Teremos de desconstruir papeis e padrões; Criar novos rituais; ser ousados e autênticos.

Quanto à segunda lição, história bonita essa… sempre fui desconfiada, sempre demorei a confiar…um dia um grande amigo disse-me que esta minha curiosa forma de ser, estaria ligada a uma certa insegurança. Não gostei de ouvir, até não concordei, mas o tempo mostrou-me que ele estava certo. Foi necessário deitar a baixo grandes muros e reaprender novamente esta lição.

A confiança é um investimento que fazemos em nós e nos outros. É um pacto inicial, só assim nos entregamos verdadeiramente às relações, sejam de que natureza sejam. Tenho aprendido, que quanto mais confiança depositamos nos outros mais os envolvemos, mais crescemos, todos. Mas aprendi também que uma vez quebrado este pacto nada mais ficará igual. E o importante que é, sabermos viver com isso… sem sofrermos, sem enfraquecermos, sem nos lamentarmos.

Nota: Não será uma tentação pensarmos que já recolhemos a sabedoria que precisamos para a nossa vida?

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