Napoleão Bonaparte

Os armários onde o meu avô guardava a sua roupa tinham um cheiro muito típico: cheiravam a uma água-de-colónia da marca Roger Gallet, chamada "Jean Marie Farina" (aqui se denota o talvez não indiferente gosto francês do meu avô, que aliás viveu em Pau, nos Pirineus Franceses, até aos 15 anos). Diz-se que esta foi a primeira água-de-colónia, tendo-se tornado tão famosa e um artigo tão especial que Napoleão Bonaparte não a dispensava, mesmo nas suas batalhas... De facto, a marca desenvolveu um frasco comprido, que Napoleão Bonaparte colocava dentro das suas botas de montar e que levava para todo o lado. O meu avô, pelos vistos, também não dispensava Jean Marie Farina, o cheiro a que todos nós automaticamente o associamos.

Nos últimos dias tenho estado a ler uma excelente biografia deste homem ("Napoleão, o homem por trás do Mito", de Adam Zamoyski, Crítica, Novembro de 2021), um dos poucos de quem se pode dizer com justiça que a sua vida terá mudado o curso da história. 

Depois da Revolução Francesa, a França estava em alvoroço constante e contava com inúmeros inimigos, sendo dirigida por um Directório. 

Desde a sua ilha natal, a Córsega (parada no tempo e sem que viesse propriamente de "berço d'ouro"), até vir para França Continental, a vida de Napoleão ou melhor "Napoleone", vai-se desenvolvendo ao longo das páginas do livro, começando naturalmente pelos seus anos de formação em escolas militares, a primeira das quais bastante austera. É um rapaz que gosta de muito de ler, que se isola dos demais, um tanto ou quanto difícil, mas que faz alguns amigos. Tem um carácter forte, com ideias próprias, uma certa soberba. Quando inicia a sua carreira militar, nomeadamente com a tomada de Toulon, começa a ganhar prestígio por ser de uma grande engenhosidade, estudando minuciosamente o terreno e atacando a partir de pontos estratégicos. Considera que a vitória em batalha está em concentrar ataques fortes em pontos certos.

Tendo optado por passar a sua lealdade para a França, tendo-se questionado anteriormente a quem deveria esse dever - na sua juventude inclinando-se mais para a Córsega, Napoleão considera que são os valores da República a que é chamado a bater-se. 

A sua paixão por Josefina é um ponto de enorme relevância no seu percurso. Sabemos o quão novo Napoleão era quando começa a ser notado, ganhando prestígio e, sucessivamente, proeminência. Com cerca de 25 anos era já general. E não pára - mas Josefina cria nele uma instabilidade nervosa - e não penso que isso tenha sido de todo indiferente para que Napoleão vivesse sempre no "fio da navalha". O seu coração não repousava na tranquilidade de se saber amado e ele está constantemente a pensar na sua mulher, que mal lhe responde às suas cartas... Josefina era uma cortesã que se ia entretendo... 

De facto, não é inabitual que o ímpeto da actividade esconda a dificuldade de resolvermos os nossos dramas pessoais e assim era com ele, parece-me: um coração intranquilo. Paradoxalmente ou talvez não, é assim que se vai tornar num extraordinário homem de acção: cavalgando Europa fora, por vales e montanhas, levando consigo um exército faminto que desbrava tudo à sua passagem. Triunfos e mais triunfos gizados por um homem que planeava bem e estudava os mapas, que não se poupava a esforços, impondo um ritmo implacável.

A Revolução Francesa espraia-se assim pela Europa. O Ancien Régime tem os seus dias contados, daí que a Monarquia Tradicional lhe dedique um ódio de estimação e creio que o Liberalismo nasceu nele. E a Europa vai viver esta grande clivagem durante todo o séc. XIX, inclusive o nosso país.

Quando fiz um estágio em Paris em 2001 lembro-me de conversar com um colega meu que tinha uma grande admiração pela forma como Napoleão organizou a França: ele pegou no caos pós-revolucionário e deu-lhe ordem. Quero assim chegar à parte do livro em que este homem se torna no grande administrador de França (o Imperador). São dele o Código Civil e a reforma administrativa que vieram a marcar até hoje a divisão deste país. 

Ao passear-nos por Paris, a figura de Napoleão é omnipresente. Naturalmente no Arco do Triunfo, ou nos Invalides, onde ele próprio está sepultado, certamente também no grande obelisco da Place de La Concorde, trazido das campanhas do Egipto. Mas em muito mais, pois o que foi o fruto das suas invasões é a pilhagem por toda a Europa: o Louvre patenteia uma colecção impressionante de obras de arte, muitas delas fruto das guerras napoleónicas.

Napoleão cria de facto uma ordem nova. Feita nesse espírito das Luzes, na ideia da libertação dos povos da opressão e do obscurantismo, segundo o Zeitgeist, o espírito desse tempo. Considerava-se que estava a servir o ideal da Civilização, um progresso em relação à forma como os países eram governados até então. Por aí também se entende o gosto de Napoleão pelas Belas Artes, uma espécie de novo Renascimento. Na verdade o estilo Império que ele inaugura é o Neoclássico. 

O gosto de Napoleão pelas coisas requintadas, desde logo pela água-de-colónia que usava, mostram um homem que apesar da forma brutal como foi tomando a Europa fora, achava que o fazia para o progresso da Humanidade. Em tudo isto, a vaidade, o culto da sua pessoa, em vez de serem como é hoje pensados como um atributo de quem pretende esconder uma complexo de inferioridade, nele assumiam parte da ambição de se tornar no "homem novo" - algo que Nietzsche assinala. 

O meu avô, que tinha o mesmo gosto de Napoleão quanto às águas-de-colónia, tinha um pregão na Páscoa: em vez de "Boa Páscoa" dizia "Bonaparte". Um jogo de sons, que jogava com a similitude do seu nome com a Páscoa, em francês. E é assim, Napoleão marcou, embora hoje apenas nos lembremos destas histórias curiosas e destas brincadeiras - embora ele não fosse "homem para brincadeiras"...







 



 

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