Portugal, país periférico e ainda reflexão sobre Gonçalo Ribeiro Telles e Cézanne

1. A situação periférica de Portugal não permitiu que por cá passassem grandes tendências de cultura, nomeadamente no domínio da arquitectura. 

Os grandes movimentos culturais na Europa nasceram noutros locais, sendo escassas as ocorrências por cá. Isso denota que, dos centros donde irradia, tal qual pedras atiradas a um lago, na cultura vai havendo também uma diluição sucessiva, em círculos cada vez mais esparsos - as periferias. Seria irrealista esperar encontrar em Portugal a profusão de monumentos romanos que existe, por exemplo, na Península Itálica, onde nasceu o Império Romano, ou o Neoclássico, que teve expressões frequentes na ruas de Paris ou de Londres.

Diz-se que é Itália que tem o maior número de lugares classificados pela Unesco, a irradiação duma civilização faz-se do centro para as periferias naturalmente. A título de exemplo, sobre o que é um centro e uma periferia numa cidade como Lisboa nunca se pode esperar que a Amadora tenha mais interesse que o centro da capital.

Mas em todo o caso, não sabemos bem o que foi Lisboa, atingida por um tremendo terramoto que a deixou em escombros. Mas mesmo assim duvido que fosse uma Veneza, a Sereníssima riquíssima que dominou os mares mediterrânicos no comércio com o Oriente.

Pertencemos ao continente europeu e somos tributários da história e civilização que por aqui ocorreram, mas os Pirineus marcam uma barreira difícil de transpor e movimentos como o Renascimento ou o Iluminismo chegaram cá tardiamente e foram em certa medida adaptados à nossa realidade, relidos localmente, o que não deixa de alguma forma de ter algum interesse: pensemos no exemplo do Manuelino, uma arquitectura essencialmente gótica, interpretada à nossa maneira com elementos que poderíamos dizer ser já renascentistas, com o gosto pelo equilíbrio e motivos decorativos típicos desta época.

O nosso país é fronteiro ao mar. Lisboa, Setúbal, o Porto, Aveiro e outras cidades desenvolveram-se nessa ligação ao mar, em desembocaduras de rios e estuários. 

Civilizações como a grega nasceram através dum intrincado sistema de cidades-estados, que realizavam trocas comerciais entre si - e com o comércio vinham as ideias, formas de estar, a cultura e a arte. A Liga Hanseática é uma espécie de "Mediterrâneo" do Norte da Europa que se estendia por milhares de quilómetros de costa, da Flandres até ao Mar Báltico. Criaram uma unidade de trocas estável durante centenas de anos, sendo ainda hoje possível identificar um estilo característico na arquitectura, que ainda aí está e que se pode encontrar em cidades tão distantes como Bruges na Bélgica ou Talinn na Estónia. Na realidade, a nossa costa portuguesa, batida por um mar agreste, não permitiu nunca que se criasse um sistema desta natureza.

2. Recentemente, assinalaram-se os 100 anos do nascimento de Gonçalo Ribeiro Telles, pessoa que já não se encontra entre nós. 

Assisti a um documentário sobre este homem, um verdadeiro exemplo de cidadão dedicado. Dizia ele que amava o nosso país. Era um homem de causas, de convicções fortes, generoso e apaixonado.

Pode dizer-se que nele se concretizava uma das frases do Papa Francisco do Fratelli Tutti: "87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de sim mesmo» aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros".

O seu empenho cívico, mostrado em tantos exemplos, é quase comovente pois foi marca duma vida inteira, uma vida longa; no outro dia falava com amigos meus e comentava este homem, comparando-o com outros homens públicos portugueses, talvez não tão dedicados quanto ele.

Há um livro de Tolentino de Mendonça com um título interessante: "O que é Amar um País?". Faço-me a mim também essa questão. 

Quer-me parecer que é-me difícil a mim amar o feio. 

Não consigo amar o Cacém. Ama-se tanto mais quanto o que se ama se veste de roupas bonitas e elegantes. Amo naturalmente as paisagens alentejanas, as suas belas planícies de montado, no verdejante da Primavera, onde as flores despontam; a Serra de Sintra, ao amanhecer ou no final do dia, em que ao pôr-do-sol os pinheiros se vestem de dourado. Os Açores ou a Costa Vicentina. Nada disso me é difícil de amar.

Poderia amar o Cacém ou Rio de Mouro, talvez por razões diferentes. Talvez por um amor às pessoas, mas aí é preciso cavar bem mais fundo. Perceber as suas raízes, as suas lutas. É pela marca de humanidade impregnada naqueles prédios feios, das pessoas que se põem a caminho da cidade naquele combóio, daqueles rostos sonolentos; o nosso coração pode amar a paisagem do Alentejo, do Douro, tentar adivinhar, por detrás de fealdade de um Casal de Cambra, os campos hortícolas de outrora, mas o objecto do nosso amor não tem que ter fronteiras rígidas.

3. Há quem diga que Cézanne foi o primeiro dos impressionistas. Amou o sul de França, existem dezenas de representações do seu Monte Victoire. Retratou a paisagem desse sul de França, a sua pintura tem uma inegável beleza. Amo a sua pintura e seria um reducionismo atroz dizer que apenas poderia gostar da Arrábida, dum qualquer promontório da Arrábida, porque ele é português. Isso seria puro nacionalismo. Quem gosta de coisas bonitas, gosta de Cézanne e gosta do nosso Henrique Pousão. Mas temos que ser justos: não temos a profusão da pintura europeia e não existe nenhum museu em Portugal como o Quai d'Orsay. Tal como seria impossível encontrar em Lisboa a riqueza monumental duma Roma Imperial. 

Ser português não nos pede que sejamos estúpidos, ou cegos. Creio que Gonçalo Ribeiro Telles estaria de acordo com isso...



 



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