Nem só de alimento vive o Homem (português), Vermeer e a interioridade
Em notícia publicada no CM diz-se:
"Os portugueses gastaram, em média, 35,5 milhões de euros por dia a comer
fora de casa, segundo dados revelados este mês pelo Eurostat e que são
relativos a 2018. O gabinete de estatísticas da UE contabiliza que, nesse ano, as famílias
gastaram 12.956 milhões de euros para fazer refeições em restaurantes, cafés,
cantinas e similares. O gasto coloca Portugal na nona posição a nível europeu. Contudo, se for tido em conta
o valor percentual dos gastos com refeições fora de casa no total das despesas
mensais das famílias, Portugal sobe para o sexto lugar: os agregados consomem
9,2% do orçamento mensal para este fim. Portugal surge, assim, acima da média
da União Europeia (7%) no peso que os serviços de restauração representam nas
despesas de consumo". (https://www.cmjornal.pt/economia/detalhe/portugueses-gastam-355-milhoes-por-dia-a-comer-fora-de-casa)
Num outro estudo, parece que os mesmos portugueses gastam cerca de 720 euros por mês em refeições fora de casa ou com serviços de alimentação ao domicílio durante as suas férias. Parece-me um pouco excessivo, no entanto, é muito expressivo duma prioridade de consumo (https://grandeconsumo.com/portugueses-gastam-em-media-720-euros-em-refeicoes-nas-ferias/#.YtPXTHbMK3A)
Tudo isto dá conta dum povo sociável, que gosta de estar em convívio, pois estar à mesa é estar com os outros, em conversa. É a matriz civilizacional mediterrânica, de que somos parte (não por acaso é património imaterial da Humanidade a chamada "direta mediterrânica", sendo especificamente referido o convívio de estar à mesa). Possivelmente consequência do nosso clima, gostamos de estar em convívio com os demais, viramo-nos para fora.
Seria um ensaio interessante pensar se a cultura portuguesa não será mais extrovertida do que introvertida...
No entanto, estes números são absolutamente contrastantes com as estatísticas ao nível da leitura. Cerca de 61 % dos portugueses não leram um livro no último ano! É o estudo "Práticas Culturais dos Portugueses", da FC Gulbenkian (https://gulbenkian.pt/agenda/praticas-culturais-dos-portugueses/). Segundo o estudo e conforme notícia da TSF "o universo de quem leu constitui-se
maioritariamente por pequenos leitores (27%, que leram entre um e cinco livros
impressos), seguidos de médios leitores (7%, que leram entre 6 e 20 livros) e
grandes leitores (apenas 1% leu mais do que 20 livros num ano)".
A leitura parece de facto relegada para um lugar secundário. Somos mais do alimento do corpo, do que do alimento do espírito.
A leitura pode ser um enorme prazer - é algo normalmente feito em silêncio e conosco mesmos. Um momento de suspensão do tempo, de puro deleite. É esse alimento do espírito de que precisamos, tanto quanto o alimento do corpo!
Pode ser que países com climas mais difíceis se tenham virado mais para a interioridade. Gosto muito de Vermeer e vejo nele esses ambientes de intimidade da Holanda. Alguém dizia - julgo que foi George Steiner, que Vermeer seria dos poucos pintores que consegue pintar o silêncio.
Ter bons cidadãos depende necessariamente de termos pessoas capazes de se sentarem a ler, pois a concentração do espírito permite que paremos e reflitamos sobre as coisas, algo absolutamente necessário numa democracia. O próprio Steiner dizia que a Civilização Ocidental tinha-se feito com base no livro e que a perda dos hábitos de leitura poderia levar a uma crise de valores.
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