Onde é a tua casa?

Há muitos anos pensava que seria extraordinário se pudesse vir viver para Lisboa, e eis que aqui estou, vivendo mesmo no centro da cidade.

A quantidade de horas que ganhei ao não ter que andar tipo pêndulo Sintra - Lisboa/Lisboa - Sintra, expressam-se em qualidade de vida incrementada, em possibilidade de gozo, de mais tempo livre. Em  capacidade de estar: quem vive fora de Lisboa e aí trabalha está sempre entre "entres". Um dia fiz as contas e ao todo já dei 3 voltas à terra em 20 anos de viagens diárias pendulares.

Gosto de fazer o exercício de me colocar a imaginar cenários: eles são bons para podermos sair da realidade, nem que seja por um bocadinho. 

Quando era pequeno, entre primos dizíamos: "que sorte temos em não viver tipo caixas de fósforos e vivermos no campo"; já houve tempos em que viver em Sintra era algo que me realizava. Mas hoje não me vejo em Sintra. Demasiado parado. Mas depois há também o seu clima - e, com a minha tendência por vezes para a melancolia, não considero que seja o melhor bálsamo para animar! Camões acertara, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".

O que tem de notável uma cidade é realmente a cultura, a estimulação. Viver onde haja livrarias,  música na rua, ou termos a oportunidade de nos cruzarmos inadvertidamente com pessoas com quem paramos à conversa, é realmente bom. 

Passar e entrar numa livraria, sentar-nos a ler um livro, a folhear imagens dum outro, como fiz há pouco no Chiado.

Mas também a imaginação abre-nos a um infindável mundo. Quem tem imaginação projecta-se para outras dimensões. E por isso podemos viajar sem ter que nos deslocar fisicamente.

Em pequeno vibrava com o fabuloso o mundo de Spielberg que nos nos convidava a sonhar: o Indiana Jones, antes disso se calhar os Gonnies. Spielberg era prodigioso para mim. Depois, na adolescência vimos uns episódios curtos: "As Histórias Maravilhosas".

Habitar o mundo da fantasia é algo que podemos sempre fazer, mas para o exercitar é preciso estar atento e sair de lugares comuns, despertar a curiosidade. Vou dar alguns exemplos:

Quando há uns meses fui viajar com um grupo de pessoas que não conhecia para os Picos da Europa, uma das conversas que tivemos à mesa foi sobre aves migratórias. A conversa foi fascinante: os narradores dessas histórias que são dos Açores falavam como há aves que são capazes de atravessar todo o Oceano Atlântico, fazem milhares e milhares de quilómetros a voar: como é isso possível? Já imaginámos o que são vários dias a voar? Como dormem essas aves?! Onde arranjam forças para estarem assim tanto tempo em esforço? Lembro-me deles dizerem que há aves que chegam fraquíssimas ao seu destino, algumas delas por um pouco mais de distância já não aguentariam, outras sucumbem mesmo. Penso que teremos falado também sobre as borboletas-monarcas, que atravessam oceanos: um pequeno animal como esse: quantos milhões e milhões de vezes terá que bater as suas asas? Estaremos suficientemente atentos e curiosos a estes fenómenos? São autênticas odisseias!

Ontem tive um jantar com muitos estrangeiros. Dizia o Daniel, um brasileiro residente em Zurique que também a Alemanha era um país extremamente burocrático; queixava-me eu da nossa grande burocracia e ele parecia ter um olhar desapaixonado, dizendo que o bom era de facto viajar e comparar: Portugal não seria pior do que esses outros países como a Alemanha ou França (já agora, ele dizia-me que "bom-bom" seria a Suiça, que teria democracia directa onde as pessoas votavam localmente, mas um país entediante segundo ele...). De facto, temos uma certa tendência para achar que na Europa do Norte as coisas funcionam todas e que aqui é que somos latinos e tudo funciona mal, e é ineficiente. Falando com o Daniel, cheguei à conclusão que a Suiça será um país que funciona porque as pessoas são levadas a participar e não é alguém que nos representa. De facto valeria a pena desenvolver um pouco isto: pode haver vários tipos de democracia, há modelos de uma democracia mais participada e activa e outros modelos mais fechados, que assentam mais na representatividade. É verdade, podem ser os modelos que explicam muita coisa.

É pois importante sairmos da realidade e tentarmos imaginar outras realidades. Estarmos atentos é importante. Também existe uma coisa que é uma tendência muito humana para começar a criar lugares-comuns e lançar libelos e erguer preconceitos. 

Mas a leitura ajuda-nos sempre a entrar noutros mundos, a vestirmos outras peles. Aliás tudo o que é cultura, que é por natureza abertura. É a capacidade de inventar novos mundos. E é um caminho sem volta: habituamo-nos a relativizar as coisas, a olhar e comparar, a perceber a lógica das coisas. Em certa medida desinstala-nos. 

E o maior exercício que a cultura dá é Ulisses que regressa a Ítaca para melhor apreciar tudo o que lhe Ítaca lhe pode dar. Mas se não fosse a viagem nunca iria conhecer a sua casa. Tudo é relação. A nossa casa é estrada, a estrada é a nossa casa. Mas só valorizamos a nossa casa depois de termos estado na estrada. Percebemos as coisas pela relação. 

No princípio era a relação: a casa é o sítio para onde nos recolhemos depois de andar na estrada, mas a estrada é para onde vamos para nos conhecermos verdadeiramente, local de prova. A estrada sem casa é escravidão; a casa sem estrada é esquecimento.


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