A oração, essa bússola interior

Ouvia há tempos o Pe. Mário Azevedo dizer numa missa que a vida do Papa deveria ser terrível, um homem com a idade dele (85 anos), doente (sem um dos pulmões), com um dia-a-dia imparável de compromissos.

É generosa, muito generosa a vida de alguém como o Papa, um homem que poderia já estar a descansar; foram generosas vidas como a de Charles de Gaulle, que eu tanto admiro e sobre quem há pouco tempo passou um documentário na televisão: uma entrega e uma abnegação em nome dum ideal (dizia-lhe às tantas André Malraux: "os nossos combates são profundamente espirituais"); ou vida de entrega de Abraham Lincoln, esse grande presidente da América que viveu os tempos mais cinzentos e conturbados da sua história, com uma terrível guerra civil que não lhe deu descanso. 

Termos tempo para nós é algo muito importante, sobretudo se temos uma vida muito agitada. Aliás, nós bem vemos como Jesus Cristo precisava de regularmente se afastar, apesar de dizer que "as raposas têm as suas tocas, e as aves dos céu os seus ninhos, mas o filho do homem não tem onde repousar a sua cabeça". 

O afastamento das coisas, a distância para deixar "a poeira assentar", permite colocar as coisas no seu devido lugar. Mestres como Ignatio de Larranaga ensinam que temos que relativizar as coisas: a proximidade em demasia cega-nos. Por isso, é preciso essa distância, essa mediação.

Na verdade, a oração pratica essa mediação. 

Colocar a nossa vida em conversa, desenrolando as contas do nosso coração, fazendo esse exercício de nos abrirmos, nesse espaço de oração que cria espaço em nós.

Podemos fazer esse exercício sentados no sossego da nossa casa. Faz-nos bem. Ter um amigo com quem podemos dialogar pode estar à distância de um fechar de olhos, sentados no sossego do sofá da nossa sala. Esse amigo é Deus e precisamos de ganhar intimidade com Ele. Podemos  assim exercitar a arte (é mesmo uma arte que vai com treino) de abrirmos dentro de nós um espaço que nos sossega e ampara. Era algo que por exemplo Etty Hilesum fazia, procurando para lá de toda a "tralha interior". Dá-nos densidade ter assim com quem falar, no interior de nós próprios. E isto pode-nos restaurar algumas das forças de que precisamos.

Nas lutas e batalhas que têm homens como o actual Papa, Charles de Gaulle ou Abraham Lincoln, jogam-se questões fundamentais para as nossas sociedades, mas cada um, quotidianamente, no espaço em que se move deve conseguir encontrar no seu coração a razão das suas lutas e pôr-se humildemente, como uma criança quase, nas mãos da Providência.

Precisamos todos disso. A nossa acção é puro activismo sem essa conversa interior - e não é fácil termos essa conversa. Pode até parecer que ninguém nos ouve. Mas é preciso que o façamos, e com optimismo.

Autores como Byung-Chul Han (vale a pena ler "A Sociedade do Cansaço", Relógio d'Água) acusam a nossa sociedade actual de premiar esse puro activismo em que nos esgotamos por completo, numa corrida desenfreada em que tudo perde o sabor. Ora, não é o muito saber que sacia, mas sim o saborear as coisas internamente, como Santo Inácio defendia e que Nadal, um dos seus discípulos também converteu no "contemplativos na acção".  

Norteada pela oração, a acção tem um propósito e um sentido - e pode mesmo ganhar um sabor!



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