L' Homme qui marche
Por vezes debato-me com decisões que tomei no passado, esquecendo-me frequentemente do que elas me trouxeram de bom. Não ter carro é uma delas, algo que só um pensar mais detido pode permitir-nos retirar dela toda a sua riqueza escondida, pois trata-se duma medida em contra-corrente. Este Verão, sentado na praia, um amigo perguntava-me se eu não me sentiria como que "preso" por não ter carro. Penso agora: o carro sempre me despertou sentimentos mistos, pois se me permite ir rapidamente para onde quero, por outro lado, é preciso ter muito cuidado para que não seja riscado (ou se risque e amolgue outros ao arrumar), ou com a velocidade, ou em não o deixar em sítios proibidos (já fui rebocado várias vezes). Enfim, não ter carro é deixar também acabar com uma fonte de preocupação.
A verdade é que fui mais ou menos compelido a enveredar por uma via de peão. Vivo no centro de Lisboa, numa casa sem garagem para onde me mudei há cerca de 4 anos, não tenho dinheiro para ter um carro. Fazendo contas ao custo de vida de viver no centro da cidade, descobrimos que o valor da habitação aumentou e que tivemos que abdicar de certas coisas. Já fiz as contas e um carro representa um empate de capital grande, que não fica por menos de 300/350 euros mensais (amortizações, oficinas, seguro, selo, etc). Some-se a isso as possíveis multas (de estacionamento, de velocidade, etc) e o valor aumentará.
Para um objecto que está geralmente mais de 70% das vezes parado, não me parece que seja muito avisado do ponto de vista financeiro esse empate de capital. Nesse sentido, acho que tem muito mais lógica a óptica do utilizador e da economia partilhada como o alugar carro quando preciso, ou andar de uber.
Desde que deixei de ter carro a minha qualidade de vida aumentou. Tenho metro ao lado de casa, eléctricos, paragens de autocarro, estações de combóio - e tenho um passe que me facilita a vida e que me permite deslocar-me para quase todos os lados da cidade, ou mesmo para fora dela.
Mas o que gostaria de fazer ressaltar é que passei a ser mais do que era de antes un "homme qui marche" e isto certamente que acrescenta interesse à minha vida - em distâncias que não ultrapassam os 1/2 km é habitual andar a pé. Isto acrescenta saúde porque andar a pé quebra com a tendência que temos para uma vida sedentária. Subo e desço ruas como a Rua Garrett, ou a Rua da Rosa no Bairro Alto, atravesso jardins como o Jardim do Príncipe Real (que na Primavera e Verão nos dá uma sinfonia de odores tropicais). Não é raro encontrar pessoas, ficar à conversa, ver as montras, entrar numa livraria. Gosto de descer o Chiado, ir ao Rossio, entrar em S. Domingos. E ao fim-de-semana, a cidade abre-se em passeios, como as habituais idas à Feira da Ladra, as voltas e voltinhas dos becos e vielas e as vistas dos miradouros.
Pela manhã a cidade é fresca, há pouca gente na rua, não temos que "andar à cotovelada"; ao final do dia as pessoas estão em esplanadas, posso descer pela Rua D. Pedro V, espreitar o miradouro de S. Pedro de Alcântara. Tenho uma percepção muito mais rica da cidade do que se fosse de carro.
Agradeço a Erling Kagge o seu excelente livro "A Arte de Caminhar" (Quetzal), que estou a gostar muito de ler e que me devolve à sabedoria da decisão que tomei!
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